Boa Tarde!
Estou lendo o livro ‘Histórias de canções: Chico Buarque’ de Wagner Homem e achei uma passagem interessante sobre uma música mais interessante e que tem muito a ver com o tema deste blog. A música é ‘Cálice’, composta por Gilberto Gil e Chico Buarque, em 1973. Segue trecho do livro, e letra da música, além de vídeo que retrata o momento relatado pelo trecho:
“Composta para o show Phono 73, realizado em maio de 1973, no Anhembi, São Paulo, a música seria cantada pela dupla de autores. Gil mostrou a Chico a primeira estrofe e o refrão “Pai, afasta de mim esse cálice”, referência à data em que os escrevera, uma Sexta-feira Santa. O parceiro viu, mais do que depressa, o jogo de palavras “cálice x cale-se”. Foi necessário apenas mais um encontro para que terminassem a canção de quatro estrofes – a primeira e a terceira de Gil, e as outras de Chico.
No dia do show, souberam que a música havia sido proibida. Decidiram cantá-la sem letra, entremeada com palavras desconexas. Desta vez, porém, a censura contou com a colaboração da própria gravadora que organizava o espetáculo e que operou com truculência. Assim que começaram, o microfone de Chico foi desligado. Irritado, ele buscou outro microfone, que também foi desativado – e assim sucessivamente, até que se rendeu, dizendo: “Vamos ao que pode”, e cantou ‘Baioque’.
Quando, em 1978, a canção foi liberada, Chico a incluiu em seu LP, e aí a censura veio de lugares antes inimagináveis: bispos da mesma Igreja que – através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – criticava a existência, em toda América Latina, de uma doutrina de segurança nacional que castrava as liberdades individuais proibiram a execução da música durante as missas.
Quinze anos depois do ocorrido, falando ao Correio Braziliense, Chico comentava as distorções que a censura provocava em todos os níveis:
“Às vezes, eu mesmo não sei o que eu quis dizer com algumas metáforas de músicas como ‘Cálice’, por exemplo. [...] naquela época havia uma forçação de barra muito grande, tanto a favor quanto contra. Ambos os lados liam politicamente o que não era. [...] Já disseram que o verso ‘de muito gorda a porca já não anda’, de ‘Cálice’, era uma crítica ao Delfim Neto, que era ministro. E gordo [risos].” Indagado sobre o real significado, respondeu: “Não faço a mínima ideia. [Risos] esse verso é do Gil.”
Segue a letra de Cálice:
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Segue link do vídeo com o trecho de Cálice sendo tocado [ ou uma tentativa disso] no Anhembi.
http://www.youtube.com/watch?v=vOGEV0W9rok
Fica
ResponderExcluirChico Buarque
Composição: Chico Buarque (1965)
Diz que eu não sou de respeito
Diz que não dá jeito
De jeito nenhum
Diz que eu sou subversivo
Um elemento ativo
Feroz e nocivo
Ao bem-estar comum
Fale do nosso barraco
Diga que é um buraco
Que nem queiram ver
Diga que o meu samba é fraco
E que eu não largo o taco
Nem pra conversar com você
Mas fica
Mas fica ao lado meu
Você sai e não explica
Onde vai e a gente fica
Sem saber se vai voltar
Diga ao primeiro que passa
Que eu sou da cachaça
Mais do que do amor
Diga e diga de pirraça
De raiva ou de graça
No meio da praça, é favor
Mas fica
Mas fica ao lado meu
Você sai e não explica
Onde vai e a gente fica
Sem saber se vai voltar
Diz que eu ganho até folgado
Mas perco no dado
E não lhe dou vintém
Diz que é pra tomar cuidado
Sou um desajustado
E o que bem lhe agrada, meu bem
Mas fica
Mas fica, meu amor
Quem sabe um dia
Por descuido ou poesia
Você goste de ficar